Os trabalhos na linha teórico-metodológica do interacionismo sociodiscursivo realizados no Brasil nos últimos anos têm sido decisivos para a constituição das grades curriculares no nível do sistema educacional nacional e dos sistemas estaduais. O papel de Anna Rachel Machado como pioneira do interacionismo sociodiscursivo no Brasil é indiscutível. Falar de interacionismo sociodiscursivo supõe pôr em evidência o papel essencial da linguagem no desenvolvimento humano. Para poder pensar sozinho, para poder construir-se como um, necessitamos dessa ferramenta coletiva que é a linguagem. Nesse marco, o trabalho empreendido por Anna Rachel Machado é um trabalho de envergadura, em que a atividade humana é vista através da atividade de linguagem, não se questionando unicamente o ensino e a aprendizagem mas também o papel da linguagem no trabalho e na aprendizagem. Com quais palavras, com quais ferramentas descobrir o enigma da linguagem que nos faz quem somos? Sem dúvida, as pesquisas apresentadas neste livro fornecem respostas originais a essa questão. Joaquim Dolz (Universidade de Genebra, Suíça)
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
Lília Santos Abreu-Tardelli e Vera Lúcia Lopes Cristovão
Capítulo 1
O INTERACIONISMO SOCIODISCURSIVO NO BRASIL
Anna Rachel Machado e Ana Maria De Mattos Guimarães
Capítulo 2
COLABORAÇÃO E CRÍTICA: POSSÍVEIS AÇÕES DO LINGUISTA NA ATIVIDADE EDUCACIONAL
Anna Rachel Machado
Capítulo 3
DIÁRIOS DE LEITURAS: A CONSTRUÇÃO DE DIFERENTES DIÁLOGOS NA SALA DE AULA
Anna Rachel Machado
Capítulo 4
UMA EXPERIÊNCIA DE ASSESSORIA DOCENTE E DE ELABORAÇÃO DE MATERIAL DIDÁTICO PARA O ENSINO DE PRODUÇÃO DE TEXTOS NA UNIVERSIDADE
Anna Rachel Machado
Capítulo 5
A CONSTRUÇÃO DE MODELOS DIDÁTICOS DE GÊNEROS: APORTES E QUESTIONAMENTOS PARA O ENSINO DE GÊNEROS
Anna Rachel Machado e Vera Lúcia Lopes Cristovão
Capítulo 6
UM INSTRUMENTO DE AVALIAÇÃO DE MATERIAL DIDÁTICO COM BASE NAS CAPACIDADES DE LINGUAGEM A SEREM DESENVOLVIDAS NO APRENDIZADO DE PRODUÇÃO TEXTUAL
Anna Rachel Machado
POSFÁCIO
Joaquim Dolz
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
APRESENTAÇÃO
Quero fazer gênero, outra vez.
Assumir e rejeitar a insustentável leveza do ser.
Ela nunca permanece. (...)
Anna Rachel Machado (2008)
Organizar uma coleção com textos de autoria de Anna Rachel Machado é uma grande honra e um imenso desafio. Honra por termos sido ambas as primeiras orientandas de Anna Rachel. Assim, ousamos dizer que acompanhamos, concomitantemente, tanto a trajetória parcial da pesquisadora quanto a trajetória do interacionismo sociodiscursivo no Brasil, uma vez que o primeiro trabalho com essa linha teórico-metodológica foi a tese de doutorado de Anna Rachel Machado, defendida no programa de pós-graduação de Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem da PUC-SP, em dezembro de 1995, com a Profa. Dra. Maria Cecília Camargo Magalhães em coorientação com Jean-Paul Bronckart. Desafio porque Linguagem e educação: o ensino e a aprendizagem de gêneros textuais revela uma parte da trajetória de trabalho de docência e de pesquisa que Anna Rachel vem realizando desde que conheceu o interacionismo sociodiscursivo em Genebra, quando fez sua bolsa-sanduíche de doutorado com Jean-Paul Bronckart em 1993. A parte deixa incompleto o todo de uma obra. No entanto, a autora não nos permitiria falar em obra, pois a eterna incompletude do humano nos deixa sempre portas não abertas e caminhos não trilhados, ou seja, a obra nunca está completa. Assim, foi grande o desafio de recortar artigos sobre questões de linguagem e o ensino e a aprendizagem de gêneros textuais que revelassem ao leitor um pouco dos quinze anos de pesquisa da autora tendo como aporte teórico-metodológico o interacionismo sociodiscursivo e, ao mesmo tempo, deixar aberta a possibilidade de leitura do não-escolhido. Para que essa leitura (do não selecionado) também seja possível, esclareceremos o lugar que este livro ocupa na trajetória da autora.
Podemos dizer que o “marco zero” da pesquisa dessa autora-múltipla é o trabalho que fez com diários de leitura e que culminou na pesquisa de sua tese de doutorado, publicada posteriormente (Machado 1998). A partir desse gênero, podemos vislumbrar duas correntes de sua escrita: uma, não acadêmica, cuja síntese se deu na publicação em 2008 do livro “de muitos amores e uma só paixão” e outra, de textos acadêmicos. A aparente dicotomia de seus textos literários e não-literários é meramente porque a esfera acadêmica pouco ou nenhum espaço dá para aflorar traços de literariedade. Assim, podemos dizer que, dentre os acadêmicos, encontram-se dois tipos: os didáticos e os teóricos. Dentre os didáticos, a organização e coautoria da coleção “Leitura e Produção de Textos Técnicos e Acadêmicos”, voltada para uso em sala de aula, com os títulos Resumo (2004a), Resenha (2004b), Planejar gêneros acadêmicos (2005a) Trabalhos de pesquisa: diário de leitura para a revisão bibliográfica (2007). Há também seus textos acadêmicos de uma linha mais teórica. É nessa linha que o presente livro se encontra. Este é o primeiro livro cuja publicação procura sintetizar alguns artigos que se voltam para o esclarecimento da linha teórico-metodológica da autora, para a explicitação de como trabalhar e elaborar modelos didáticos de gênero e para reflexões sobre o ensino e as relações deste com a linguagem. O segundo livro, intitulado Linguagem e Educação: o trabalho do professor em uma nova perspectiva, volta-se para as questões do trabalho docente.
Ambos os livros possuem textos de Anna Rachel e de colaboradores. E ousamos dizer que a autora não nos permitiria dizer que os textos são “puramente” seus. Sua maneira bakhtiniana de ver o processo de pesquisa e de escrita, seu altruísmo em compartilhar descobertas e sua ética pessoal e profissional são cativantes e emocionantes em uma época tão marcada pelo individual e pelo não-coletivo. Nesse sentido, ter se encantado pelo quadro do interacionismo sociodiscursivo não é por acaso. A linha teórica-metodológica que segue condiz com seu percurso profissional e que pode ser comprovado por todos que com Anna Rachel conviveram e convivem. Os textos desta coletânea permitem visualizar isso.
No primeiro deles, “O interacionismo sociodiscursivo no Brasil”, Machado e Guimarães esclarecem alguns traços do contexto sócio-histórico-cultural que ancorou o ISD como uma fundamentação teórico-metodológica para a Linguística Aplicada no Brasil. Pontuando os principais autores em cada momento histórico e relacionando as políticas educacionais de cada época aos pressupostos teórico-metodológicos e epistemológicos predominantes em cada período histórico, as autoras constroem um quadro diacrônico que nos ajuda a lembrar que uma teoria vigente, seja ela qual for, se ancora em bases históricas próprias, permitindo lembrar ao leitor e pesquisador - iniciante ou não - que fazer pesquisa significa antes de tudo, fazer pesquisa em um determinado contexto com as restrições e aberturas que lhe são próprias. Além disso, as autoras, ao mostrar a inserção do ISD no Brasil, revelam alguns erros bibliográficos de autoria e publicação nos próprios PCN, revelando que as bases teóricas para os documentos prescritivos da educação no Brasil estavam em processo de construção e apontando possíveis consequências disso sem tirar o mérito de tais documentos. Enfim, o artigo compartilha descobertas fascinantes pra quem quer compreender como surgiu o trabalho com gêneros textuais no Brasil e quais foram as teorias responsáveis por isso. Não é à toa que esse artigo abre a coletânea. Esclarecedor e provocador, o texto nomeia cada etapa do interacionismo sociodiscursivo no Brasil e a explosão de pesquisas nesta área por todo o país. As autoras se preocupam em nomear cada pesquisador responsável pela divulgação do ISD e seus grupos, sem se esquecerem daqueles, inclusive, que não se consideram seguidores e difusores do ISD. Por fim, as autoras desembocam no histórico do grupo ALTER, grupo que coordenam atualmente e apontam dificuldades teóricas e metodológicas atuais levando em conta também o contexto sócio-histórico brasileiro.
Em “Colaboração e crítica: possíveis ações do linguista na atividade social”, Machado questiona o uso dos termos “linguística” e “ensino” e propõe uma visão ampliada sobre a relação entre linguística e ensino, recuperando retrospectivamente como se deu a construção dessa relação e baseando-se nos princípios do interacionismo sociodiscursivo para defender a ampliação da noção de ensino, indo além da visão reducionista das ações do professor em sala de aula. Com exemplos esclarecedores de análise de textos prescritivos da atividade educacional e de análise da transposição da noção de gênero nos PCN, a autora exemplifica como o linguista pode agir criticamente frente às transposições de conhecimentos científicos.
No capítulo “Diários de leituras: a construção de diferentes diálogos na sala de aula”, a linguista sustenta a possibilidade/concretude de um instrumento para o desenvolvimento de a) pensamento autônomo; b) crítica e autocrítica; c) planejamento; d) autonomia e e) interações mais igualitárias, com o uso de diários de leitura. Seu artigo traz uma definição esclarecedora do gênero diário de leitura, seguida de uma concepção de leitura de cunho bakhtiniano. Na sequência, a autora apresenta orientações para a produção de diários por alunos e prossegue com maneiras de discuti-los e de avaliá-los. Como não poderia deixar de inovar, insere trechos de diários que podem ilustrar o desenvolvimento da capacidade leitora dos alunos. Esse capítulo soma-se a diversos outros publicados por Machado sobre esse gênero inovador e ainda pouco difundido no Brasil e que, podemos dizer, foi a pedra fundamental de toda sua trajetória abraçando o ISD.
O capítulo “Uma experiência de assessoria docente e de elaboração de material didático para o ensino de produção de textos na universidade” relata e analisa uma experiência de assessoria docente voltada para o ensino de produção textual na universidade. Essa assessoria contava com assessores e professores que se reuniam para a elaboração de material didático na forma de sequência didática de artigo de opinião. O relato contempla as etapas de análise e elaboração, as dificuldades vivenciadas tanto em relação às teorias quanto às interações e às soluções encontradas. É um texto que deveria servir de base para todos os formadores de professor, uma vez que mostra, mais uma vez, total coerência com os princípios do interacionismo sociodiscursivo e, consequentemente, com a preocupação ética que todos os formadores deveriam ter. Apenas para exemplificar, ressaltamos as análises feitas previamente para a compreensão do contexto a sofrer a intervenção, que evidenciam, mais uma vez, a importância de se compreender o ensino além do trabalho em sala de aula. Nessa análise, incluiram-se os três níveis da atividade educacional: os documentos da política educacional brasileira, o contexto da universidade em que os professores trabalhavam – e o discurso que nela circulava – e a análise da atividade educacional relatada pelos próprios professores. Vale ressaltar também o retorno do próprio texto resultado da assessoria visto criticamente pelos professores e a importância da escuta do outro nesse trabalho em que, muitas vezes, o assessor/coordenador/formador se vê como o “par mais desenvolvido”, esquecendo-se da dialética transformadora de toda relação em uma visão verdadeiramente vygotskyana.
No capítulo seguinte, intitulado “A construção de modelos didáticos de gêneros: aportes e questionamentos para o ensino de gêneros”, Machado e Cristovão procuraram disponibilizar um panorama das pesquisas na área de estudos de gêneros na perspectiva do ISD. O programa de Linguistica Aplicada e Estudos da Linguagem (LAEL) da PUC-SP foi o ponto de partida com pesquisas sob a orientação de Machado e, posteriormente, por pesquisadores autônomos. Os objetivos são: a) avaliar a validade do construto do ISD para as pesquisas de estudos de gêneros textuais; b) levantar os gêneros trabalhados; c) identificar os objetivos alcançados e d) reconhecer as conclusões teóricas, metodológicas e didáticas alcançadas. As autoras conseguem, através do levantamento das pesquisas feitas, mostrar a repercussão do ISD no país ao longo desses anos, sem deixar de ressaltar que os pesquisadores brasileiros conseguiram adaptar, acrescentar e, consequentemente, contribuir para o quadro teórico-metodológico. Mais uma vez, é lembrada a ética que nos leva a um aprofundamento teórico constante para não corrermos o perigo de fazermos intervenções inconseqüentes.
Por fim, encerramos esta coletânea com o capítulo “Um Instrumento de avaliação de material didático com base nas capacidades de linguagem a serem desenvolvidas no aprendizado de produção textual”. Neste artigo, partindo do pressuposto de que a produção textual envolve três tipos de capacidades de linguagem, segundo pesquisas em didática de línguas de cunho interacionista sóciodiscursivo, Machado apresenta um instrumento para a avaliação a priori de seqüências didáticas voltadas para o aprendizado de gêneros. A autora exemplifica o uso desse instrumento com a análise de três sequências voltadas para a resenha crítica, tomando como critério as capacidades de linguagem. Os resultados apontados por Machado mostram que o instrumento foi adequado para a avaliação das seqüências, de seus aspectos positivos e suas deficiências, permitindo, assim, um repensar sobre as atividades nelas propostas. A escolha desse texto para fechar esta coletânea deu-se por mostrar de forma bastante clara como fazer uma análise de sequências didáticas com base no modelo do ISD e a utilidade de tal análise para orientar o trabalho docente.
Acreditamos, assim, que os seis textos aqui selecionados contribuem sobremaneira para as discussões sobre gênero e ensino pautadas pelo quadro teórico-metodológico do interacionismo sociodiscursivo. (As organizadoras)
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