Diz o dito popular que desgraça pouca é bobagem. Se a máxima carrega lá suas verdades, ela se inscreve nesse livro tão bem urdido por Valéria Guimarães, que persegue, com rara sensibilidade e doses equilibradas de bom humor, essa história dos fait divers, gênero escandaloso que fez sucesso na virada do século XIX para o XX. Com seu estilo particular – que acumulava histórias sensacionais com desenlaces igualmente sensacionais – de narrativas picantes, esse tipo de crônica virou coqueluche num momento em que a própria seara política, cultural e social andava revolta. Andávamos nos tempos do final da escravidão e do começo da República, regime esse que prometeu a igualdade, mas entregou, em largas doses, a exclusão social. Esse era também o momento da voga das teorias raciais, que passavam a deslegitimar a cidadania recém adquirida, e pautada em critérios universais, sob a alusão de que os homens eram biologicamente diferentes. Mais ainda: contando com as certezas da ciência determinista do momento, advogava-se que os códigos deveriam ser diferentes (pois adaptados às diferentes raças), assim como condenava-se a miscigenação e a “degeneração” que dela adviria.
Por isso, o “pulo do gato” dado por Valéria foi estabelecer conexões, nada óbvias ao leitor desavisado, entre casos de suicídio por amor e loucura, e as conclusões teóricas que localizavam nos negros, mestiços e imigrantes os grandes alvos das teorias raciais e de suas decorrências pessimistas. Nesse terreno, não existiria a mera coincidência dos tolos, mas uma aplicação acelerada e inesperada de modelos que viam nesses grupos apenas “classes perigosas”, assim como procuravam afastá-los do convívio social e da nova civilidade.
Dizia Machado de Assis, ele próprio um leitor de fait divers, que “o homem gosta de grandes crimes”. Na verdade, tudo que se quer é uma boa história e essa seria (e é) uma estratégia editorial das mais eficientes. Nada como recuar um século atrás e ver como toda essa história começou. Na São Paulo que se convertia rapidamente em metrópole, os negros e estrangeiros passavam a representar o lado degenerado e perigoso dessa urbe dos sonhos e projeções.
SOBRE A AUTORA:
Valéria Guimarães é doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), professora de Teoria da História na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp/Franca) e coordenadora do projeto Jovem Pesquisador - Fapesp “As transferências culturais na imprensa na passagem do século XIX ao XX - Brasil e França”. Pesquisadora associada ao Centre d'Histoire culturelle des sociétés contemporaines (CHCSC) da Université de Versailles Saint-Quentin-en-Yvelines (UVSQ), onde concluiu parte de seu pós-doutorado com bolsa Hermès da Fondation Maison des sciences de l'homme (FMSH) e da Capes. Publicou a obra Transferências culturais: o exemplo da imprensa na França e no Brasil (Mercado de Letras, Edusp 2012).
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