“O tempo”, escreveu Machado de Assis em Esaú e Jacó, “é um rato roedor de todas as coisas”. Em seu incessante ofício, modifica e recria o “tecido invisível” outra imagem machadiana – do que foi um dia vivido, deixando para o futuro a tarefa da leitura vale dizer, da interpretação daquilo que foi preservado de seus dentes vorazes e também das lacunas, silêncios, e esquecimentos que deixou.
Cronistas, memorialistas e historiadores, tão diferentes entre si, têm em comum o fazer do tempo a substância de sua reflexão e de sua escrita. E, mais ou menos conscientes da ação corrosiva do roedor que lhes fornece a matéria que trabalham, os três tecem seus textos entrecruzando as malhas do registro e da invenção, do lembrado e do esquecido, do perdido e do conservado.
O livro que a Coleção Letras em Série oferece à nossa leitura, para além de retirar Bastos Tigre das garras do roedor de todas as coisas que parecia ter apagado definitivamente o que um dia o bigodudo escritor publicara, permite uma densa experiência de leitura das várias temporalidades que nele se inscrevem, graças ao cuidadoso trabalho de pesquisa de Marcelo Balaban, condensada no imprescindível estudo introdutório e generosamente oferecida nas notas que acompanham o texto, frutos, ambos, de sua dissertação de mestrado em História Social da Cultura desenvolvida na PUC-Rio.
Como nos antigos manuscritos em que é possível identificar vestígios de textos anteriores sobre os quais outros textos foram escritos e que os eruditos chamam de palimpsestos, o leitor atento saberá descobrir, graças ao mapa traçado por Marcelo Balaban, o sentido das letras, da leitura e dos literatos no Rio de Janeiro da Belle Époque; o peso do modernismo na interpretação da literatura entendida como beletrismo; as marcas da segunda metade dos anos 1940 na narrativa memorialística publicada por Bastos Tigre em 1946; o significado da nostalgia do narrador da série e da escolha de Emílio Menezes de como figura paradigmática dos literatos de um tempo, já então, remoto; e – por que não? – as pegadas ainda frescas do nosso tempo vivido nas questões que Marcelo Balaban formula ao organizar, introduzir e anotar a presente edição, ousando assim confrontar o quase-esquecido Tigre com o rato roedor de todas as coisas.
A nós cabe a aventura da leitura, que é sempre a possibilidade de múltiplas descobertas. Vamos a ela!
_________________________________________________________________________
No início do século XX, a fotografia já era uma mania na cidade, que popularizou-se desde as últimas décadas do século XIX. Os retratos deixavam de ser objetos de desejo para transformar-se em objetos de consumo de grande parte da população de São Paulo e do Rio de Janeiro. Aos poucos, ganhou as páginas dos jornais e revistas, de maneira que, já na época das reformas de Pereira Passos, grande parte da vida mundana do carioca foi registrada e exposta ao grande público através das páginas de periódicos como a Kosmos, Renascença, O Malho e posteriormente na Fon-Fon, Careta, e tantos outros. Eram os chamados instantâneos, fotografias feitas nas ruas, no exato momento em que as principais figuras da sociedade carioca desfilavam na Avenida Central, na Rua do Ouvidor, e demais endereços elegantes da cidade. Na primeira crônica, bem como na demais, Tigre pretende oferecer a seus leitores um desses flagrantes, um desses “retratos em movimento” ou do movimento de uma parte da sociedade carioca, que tinham a cidade como cenário e não eram produzidos com o cuidado e os recursos mágicos das oficinas fotográficas. Como se fossem flashes de memória registrados ao correr da pena, nos quais estariam fixados episódios pitorescos, e verdadeiros, de uma época. Instantâneos do Rio de Janeiro do tempo da sua mocidade, revelados na câmara escura de suas lembranças, que naquela altura já estavam um tanto amareladas e pouco nítidas, mas ainda guardavam muita vida, especialmente sobre o mundo literário.
Marcelo Balaban nasceu em Brasília, no dia 30 de janeiro de 1973. Começou a estudar a vida e obra do autor das crônicas deste livro durante o curso de graduação em letras na Unicamp. Formou-se em 1997, e no ano seguinte iniciou mestrado em história social da cultura na Puc-Rio, defendendo dissertação sobre Bastos Tigre no começo do ano 2000. Atualmente é doutorando no departamento de história da Unicamp, onde desenvolve pesquisa sobre a trajetória de Angelo Agostini, caricaturista italiano radicado no Brasil na segunda metade do século XIX.