O projeto iniciado nos anos 1990 era de um muro que isolasse os latino-americanos, e esse muro, dispositivo de visibilização de uma fronteira entre o México e os Estados Unidos, desenhava um território habitado pelo medo. Um muro como texto (arquitetônico) de grande explicitude que, traduzido para o verbal, corresponderia a algo como “Fora daqui!”.
Depois, em julho de 2019, chegaram as gangorras de Rael e San Fratello para fazer frente às políticas antimigratórias e restituir às fronteiras sua vocação de território nuançado, matizado, cambiante. Construídas com apoio sobre o muro, em seu balanço contínuo, funcionavam como texto cinético, garantindo que “o que acontece de um lado tem consequências no outro”. Assiste-se, então ao texto-gangorras que requalifica o texto-muro, agenciando novas formas de contestação das forças monológicas que pretendem negar os hibridismos. Movimento heterotópico em cujo contexto se desenvolve uma reflexão sobre discurso e cenografia, sendo reafirmada a urgência de outras tantas gangorras para conter os fascismos dos muros que se impõem no contemporâneo. Primado do dispositivo-gangorra: artefato que, sob o modo lúdico, dá passagem a afetos de uma micropolítica ativa que desqualifica formas opressoras como os muros de fronteira.
Sobre o autor;
Décio Rocha -- Professor Titular de Linguística do Departamento de Estudos da Linguagem do Instituto de Letras, Uerj; professor Associado de Língua francesa, aposentado, do Instituto de Aplicação, Uerj; desenvolve pesquisa em Análise do Discurso, em interlocução com os estudos foucaultianos e deleuzianos, com foco na dimensão ético-política do trabalho do professor. Membro do grupo de pesquisa Atelier e do GT, Anpoll Discurso, Trabalho e Ética. rochadm@uol.com.br